No dia em que lembramos o Golpe Militar de 1964 (31/03), o CRESS Entrevista a jornalista Jana Sá sobre verdade, memória e justiça.
Jana é filha de Glênio Sá, um dos potiguares mortos pela ditadura, e presidenta do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça do RN, do qual o CRESS-RN também faz parte.
Mestra em Ciências Sociais e especialista em Produção de Documentário, Jana é editora na agência de notícias Saiba Mais, assessora de comunicação política, pesquisadora e documentarista.
Integra o grupo de Filhos e Netos Vítimas da Ditadura Civil-Militar e a Coalizão por Memória, Verdade, Justiça e Democracia. Colaborou, ainda, no Relatório Final da Comissão da Verdade da UFRN.
“Não se trata apenas de honrar o passado, mas de garantir que as novas gerações saibam a verdade e que a impunidade não siga sendo regra. Porque sem memória, sem verdade e sem justiça, a democracia segue incompleta”, afirma.
Confira a entrevista:
CR: Qual a importância da criação, aqui no Rio Grande do Norte, do Comitê Estadual da Verdade, Memória e Justiça?
JS: A criação do Comitê Estadual da Verdade, Memória e Justiça do Rio Grande do Norte representa um passo fundamental para a construção de uma memória coletiva sobre os crimes da ditadura e a luta por justiça no estado. A experiência das Comissões da Verdade demonstrou que, sem estruturas permanentes, o debate sobre os impactos da repressão tende a ser silenciado. O comitê surge, então, como uma instância de resistência e aprofundamento dessa luta, garantindo que a história dos perseguidos políticos do RN não caia no esquecimento e que o Estado assuma sua responsabilidade diante das graves violações de direitos humanos cometidas. Além disso, é uma ferramenta para pressionar por políticas públicas de memória e para fortalecer o combate ao negacionismo histórico, que ainda encontra espaço em setores da sociedade e das instituições.
A luta por Memória, Verdade e Justiça não é apenas uma reivindicação histórica, mas uma necessidade para a consolidação da democracia no Brasil. Trata-se do direito de reconhecer e contar a história a partir da perspectiva das vítimas da ditadura militar, assegurando que os crimes cometidos pelo Estado contra opositores políticos não sejam esquecidos nem relativizados.
Mas essa luta não é apenas sobre o passado. Ela diz respeito ao presente e ao futuro, pois a impunidade de ontem se reflete na violência institucional de hoje. O Brasil falhou em sua justiça de transição e, por isso, mantém estruturas autoritárias que seguem operando, seja no sistema de segurança pública, no Judiciário ou na política.
Lutamos não apenas pelos que vieram antes de nós, mas também pelos que virão. A construção de uma sociedade verdadeiramente democrática passa pelo reconhecimento dos erros do passado, pela responsabilização dos culpados e por políticas públicas que garantam a não repetição desses crimes.

CR: Seu pai, Glênio Sá, é um dos mortos potiguares na ditadura. Como este fato atravessa a sua trajetória, a sua vida e militância?
JS: A história do meu pai, Glênio Sá, atravessa a minha vida de maneira profunda e irreversível. Não é uma memória distante ou apenas uma narrativa familiar. É algo que moldou minha identidade, minha trajetória profissional e minha militância. Cresci em meio às contradições entre a versão oficial de sua morte e o que minha mãe e meus tios contavam. O Estado tentou apagá-lo da história, negando sua luta e forjando um relato que o desvinculasse da resistência à ditadura. Mas nossa memória impediu que isso acontecesse.
A violência do regime não interrompeu apenas a vida do meu pai; ela impôs um luto contínuo à nossa família, um vazio que não pode ser preenchido, mas que nos move. Minha mãe nunca aceitou o silenciamento e fez da busca pela verdade um compromisso inegociável. Cresci vendo essa insistência, essa recusa em aceitar a narrativa oficial, essa dor transformada em luta. E foi isso que me trouxe até aqui.
A escolha pelo Jornalismo nunca foi apenas uma profissão para mim. Foi uma necessidade. Eu precisava entender, precisava contar histórias que não fossem apagadas, precisava enfrentar esse poder que distorce e silencia. Da mesma forma, minha atuação nos movimentos sociais e na presidência do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça não é apenas uma militância. É a continuidade da luta do meu pai e de tantos outros que ousaram sonhar com um país diferente.
Por isso, em fevereiro deste ano, entramos com um requerimento na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos para que o Estado reconheça que meu pai foi morto em decorrência de repressão política do Estado brasileiro com fundamento na Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995. Essa legislação criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e reconhece como vítimas das ações de repressão estatal todas as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, de atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 5 de outubro de 1988.
A lei não estabelece que a morte ou desaparecimento tenha ocorrido dentro desse período, mas sim que exista um vínculo causal entre a perseguição política sofrida e a violação cometida pelo Estado. No caso do meu pai, Glênio Sá, sua trajetória de militância foi marcada por sucessivas prisões, torturas brutais e perseguições que deixaram sequelas físicas e psicológicas irreversíveis.
Mas essa luta não é apenas sobre o meu pai. Cada caso não reconhecido é um lembrete de que a justiça de transição no Brasil continua inconclusa, de que o país segue em dívida com aqueles que enfrentaram a ditadura e suas famílias. Lutar pelo reconhecimento de Glênio Sá é exigir que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade por todas as vidas ceifadas pela repressão. Não se trata apenas de honrar o passado, mas de garantir que as novas gerações saibam a verdade e que a impunidade não siga sendo regra. Porque sem memória, sem verdade e sem justiça, a democracia segue incompleta.

CR: Vivemos tempos de avanço do conservadorismo e do fascismo, onde ainda precisamos reafirmar a importância da democracia. Como você analisa a conjuntura política do país neste momento e quais as perspectivas para os próximos anos?
JS: O Brasil ainda sofre as consequências da falta de responsabilização pelos crimes da ditadura. A impunidade dos torturadores permitiu que o autoritarismo seguisse latente e ressurgisse com força nos últimos anos.
Os atentados recentes contra a democracia são prova disso. O golpe contra Dilma Rousseff em 2016, a eleição de Bolsonaro em 2018 – um defensor da ditadura, da tortura e de ícones torturadores –, as tentativas de desestabilizar as eleições de 2022 com ataques às instituições e ao processo eleitoral, o ataque à sede dos três poderes, em janeiro de 2023, e, agora, a revelação da trama golpista envolvendo setores militares sob a liderança do ex-presidente Bolsonaro. Esses episódios demonstram que, quando a história é negada, o autoritarismo encontra brechas para retornar.
A decisão do ministro Flávio Dino, do STF, que reconhece que o crime de ocultação de cadáver não prescreve e não está protegido pela Lei da Anistia de 1979, traz um importante avanço na luta por verdade, justiça e memória. Alinha-se ao compromisso do Brasil com acordos internacionais, como a Convenção para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. Reforça, também, as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que exige que o país investigue e responsabilize os autores desses crimes.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos têm sido chamados a se posicionar sobre a necessidade de rever a interpretação da Lei da Anistia, para que ela não seja um obstáculo à justiça.
O desafio agora é transformar essas conquistas em algo concreto, garantindo que o Brasil rompa, de uma vez por todas, com a cultura da impunidade. Para os próximos anos, a luta será por uma justiça de transição efetiva, pelo fortalecimento das instituições democráticas e pela construção de uma sociedade que não apenas lembre seu passado, mas que ativamente impeça que ele se repita.
O Brasil não superou os resquícios da ditadura, e isso se deve, sobretudo, ao fato de que o país não realizou sua justiça de transição de forma efetiva. A ditadura não foi julgada, os responsáveis por crimes contra a humanidade não foram punidos, e muitas das suas estruturas de repressão foram recicladas dentro do Estado democrático.
A violência policial, o encarceramento em massa, as execuções extrajudiciais e a perseguição a militantes de movimentos sociais são exemplos claros de que a mentalidade autoritária da ditadura não foi erradicada. Além disso, a permanência de homenagens a torturadores, a resistência em abrir arquivos militares e o desmonte de órgãos de Memória, Verdade e Justiça demonstram o quanto a democracia brasileira segue sendo frágil e tutelada.
Superar os resquícios da ditadura exige um enfrentamento real dessa herança. Isso passa pelo reconhecimento das vítimas, pela responsabilização dos agentes repressores e pela criação de políticas de memória que garantam que esse período não seja esquecido ou reabilitado como algo positivo.
CR: Enquanto jornalista, como você vê a importância da comunicação social, hoje, na defesa da democracia e no combate à desinformação?
JS: A comunicação sempre foi um campo de disputa e, no contexto atual, tornou-se ainda mais central na defesa da democracia. Cresci ouvindo minha mãe contestar a versão oficial da morte do meu pai, forjada pelo Estado para encobrir a verdade. Sei, na pele e na memória, o que significa enfrentar um aparato que silencia, distorce e apaga histórias. E sei também o poder da palavra, da denúncia e da informação na luta por justiça.
A disseminação da desinformação é uma das principais armas da extrema direita para deslegitimar instituições, atacar a memória histórica e manipular a opinião pública. Isso não é novo. Durante a ditadura civil-militar, a censura e a propaganda oficial moldaram narrativas que ainda hoje tentam prevalecer. O que mudou foi a velocidade e o alcance dessa manipulação, potencializados pelas redes sociais e pelo uso massivo de tecnologias para espalhar mentiras e distorcer a história.
Por isso, o jornalismo tem um papel essencial na garantia do direito à verdade. Não se trata apenas de combater fake news, mas de enfrentar um sistema que produz desinformação para sustentar privilégios e impedir avanços sociais. Precisamos de um compromisso com a informação baseada em fatos, na investigação rigorosa e na valorização das vozes que historicamente foram silenciadas — indígenas, camponeses, negros, moradores de periferia e tantos outros que tiveram seus direitos violados e suas histórias apagadas.
Como editora de uma agência de notícias, vejo diariamente os desafios de combater a desinformação, mas também percebo o poder transformador de uma comunicação comprometida com a justiça social. Nosso trabalho, enquanto jornalistas, é garantir que a sociedade tenha acesso a informações que fortaleçam a democracia e impeçam que os erros do passado sejam repetidos. Porque não há democracia plena sem memória, verdade e justiça — e sem um jornalismo que não se cale diante do autoritarismo.