Em celebração ao início da campanha “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres”, neste dia 20/11, o CRESS Entrevista a assistente social Ana Lígia Alcindo sobre os desafios da atuação profissional junto às mulheres em situação de violência.
Ana Lígia é mestra em Serviço Social; especialista em Fundamentos e Competências Profissionais do Serviço Social, em Política de Assistência Social e em Assistência Social. Atua na área da saúde e pesquisa temáticas que envolvem a discussão sobre a instrumentalidade do Serviço Social na formação e no exercício profissional.
A assistente social fala sobre a campanha, os fatores que ainda impedem a igualdade de gênero nos dias atuais e na responsabilidade do Serviço Social na escuta qualificada, acolhida e atuação crítica na direção da viabilização de direitos.
Confira a entrevista na íntegra:

CR: Neste mês de novembro, uma campanha global chama à atenção para uma questão ainda presente nos dias atuais: a violência contra a mulher. Na sua opinião, que fatores contribuem para que, em pleno ano de 2025, ainda registremos tantos casos de violações e até feminicídios?
AL: Nos dias atuais, o número de violações contra mulheres e os casos de feminicídio ainda assombram a sociedade. Essa persistência da violência de gênero é resultado de um conjunto complexo de fatores históricos, culturais, institucionais e sociais que continuam a perpetuar a desigualdade entre homens e mulheres.
Um dos principais fatores é o machismo estrutural, ainda profundamente enraizado nas relações sociais. Desde a infância, meninos e meninas são educados sob estereótipos que reforçam a ideia de que o homem deve exercer poder e controle, enquanto a mulher é vista como submissa. Essa cultura de dominação alimenta comportamentos violentos e naturaliza diversas formas de agressão, muitas vezes disfarçadas de “ciúme” ou “cuidado”.
Outro aspecto relevante é a falta de efetividade nas políticas públicas de proteção à mulher. Embora legislações como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio representem avanços significativos, a aplicação prática ainda encontra barreiras — desde a falta de recursos e treinamento adequado para profissionais da segurança até a morosidade do sistema judiciário. Muitas mulheres também enfrentam dependência econômica e medo de retaliação, o que dificulta a denúncia e a busca por ajuda.
Além disso, o papel da mídia e das redes sociais é ambíguo. Se, por um lado, esses espaços têm servido para denunciar casos e mobilizar campanhas de conscientização, por outro, ainda reproduzem padrões sexistas e discursos que culpabilizam as vítimas. O resultado é a manutenção de uma cultura que, em vez de proteger, expõe e julga as mulheres.
Portanto, a permanência dos casos de violações e feminicídios em 2025 não é fruto do acaso, mas de uma estrutura social que ainda resiste à igualdade de gênero. Romper com esse ciclo exige uma mudança profunda — que passa pela educação, pela formação cidadã, pela responsabilização efetiva dos agressores e pela transformação cultural que reconheça, na prática, o valor e os direitos das mulheres.
CR: No Brasil, a campanha inicia exatamente em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, sendo chamada de 21 Dias de Ativismo. Como a violência de gênero afeta ainda mais as mulheres negras?
AL: Os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres são uma campanha internacional que busca conscientizar a sociedade sobre as diversas formas de violência que atingem mulheres e meninas em todo o mundo.
No Brasil, o movimento começa no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e segue até 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Essa escolha não é por acaso: ela marca o compromisso com uma luta que é, ao mesmo tempo, de gênero, de raça e de classe.
A violência contra a mulher é um problema estrutural, sustentado por uma cultura patriarcal que naturaliza o controle e a agressão às mulheres. No entanto, quando observamos esse fenômeno a partir do recorte racial, percebemos que as mulheres negras sofrem de forma ainda mais profunda os impactos da desigualdade e da violência.
Segundo dados de pesquisas nacionais, as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio, violência doméstica e sexual, além de enfrentarem maiores dificuldades para acessar a justiça, o sistema de saúde e políticas de proteção. A herança do racismo estrutural coloca essas mulheres em situações de vulnerabilidade social, precarização do trabalho e invisibilidade institucional, o que amplia os riscos e limita as possibilidades de denúncia e acolhimento.
Além da violência física e sexual, as mulheres negras enfrentam também violências psicológicas e raciais — no ambiente de trabalho, nas ruas, nas redes sociais e até mesmo nos espaços onde deveriam se sentir seguras. São violências que silenciam, marginalizam e desumanizam.
Durante os 21 Dias de Ativismo, é fundamental reconhecer que não existe igualdade de gênero sem justiça racial. Lutar pelo fim da violência contra as mulheres exige olhar amplo para que as vozes dessas sejam ouvidas e suas vidas, valorizadas.
Que esses 21 dias sejam mais do que uma campanha: sejam um convite à reflexão e à ação coletiva, para que todas as mulheres, em sua diversidade, possam viver com dignidade, respeito e liberdade.
CR: A partir da sua vivência e atuação profissional na área de Saúde, que situações você mais verifica quando o assunto é violência de gênero?
AL: Atuo como assistente social em um hospital público estadual de média complexidade e uma unidade de pronto atendimento. No cotidiano do Serviço Social na área da saúde, tenho acompanhado diversas situações de vulnerabilidade social, mas as situações de violência de gênero são, sem dúvida, algumas das mais desafiadoras e marcantes.
O hospital e maternidade é uma das portas de entrada para mulheres em situação de violência sexual, e a unidade de pronto atendimento é referência para mulheres em situação de violência doméstica. Assim, estas chegam ao pronto atendimento com ferimentos físicos, emocionais ou outros agravos decorrentes de agressões domésticas e sexuais.
Na maioria dos casos, as mulheres chegam acompanhadas de familiares ou sozinhas, muitas vezes com medo e vergonha de relatar o ocorrido. O primeiro contato exige acolhimento e escuta qualificada — princípios fundamentais da prática do Serviço Social na saúde.
Essas situações evidenciam que a violência de gênero não é apenas um problema individual, mas sim uma questão social, estrutural e de saúde pública, que exige respostas articuladas entre as políticas sociais.
Enquanto assistente social, enfrento o desafio diário de atuar entre as limitações institucionais e a necessidade de viabilizar direitos, especialmente o direito à vida e à integridade física e emocional das mulheres.
A vivência no campo da saúde tem me mostrado que o acolhimento humanizado e a escuta atenta são instrumentos potentes na reconstrução da autonomia das mulheres em situação de violência. Mais do que encaminhar casos, nosso papel é contribuir para o fortalecimento da rede de proteção e a promoção de uma cultura de equidade de gênero dentro e fora dos espaços institucionais.
Concluo que o trabalho da/o assistente social na saúde, diante da violência de gênero, é um exercício constante de ética e compromisso com os direitos humanos. Cada atendimento é uma oportunidade de romper o ciclo de silêncio e contribuir para que as mulheres reconheçam seu valor e sua capacidade de reconstruir suas histórias.
CR: Como a/o assistente social pode atuar de maneira ética e contribuindo para a viabilização de direitos das mulheres em situação de violência que procuram os serviços de Saúde?
AL: A atuação da/o assistente social nos serviços de saúde é fundamental para a efetivação dos direitos das mulheres em situação de violência. A/o profissional, pautada/o nos princípios éticos do Serviço Social — como o respeito à dignidade humana, a defesa intransigente dos direitos humanos e o compromisso com a equidade e a justiça social —, desempenha um papel estratégico na identificação, acolhimento e encaminhamento adequado dessas mulheres dentro da rede de proteção.
A ética profissional exige que a/o assistente social atue com sigilo e escuta qualificada, assegurando um atendimento livre de julgamentos e discriminações. O acolhimento ético e humanizado permite que a mulher se sinta segura para relatar sua situação e buscar ajuda, rompendo o ciclo de silêncio e medo que muitas vezes a mantém em contextos de violência.
Além do atendimento direto, a/o assistente social deve atuar de forma articulada com a rede intersetorial, envolvendo políticas públicas de saúde, assistência social, segurança pública e justiça. Essa articulação é essencial para garantir o acesso aos serviços especializados, como Delegacias da Mulher, Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Defensorias Públicas e abrigos temporários, fortalecendo a proteção e a autonomia das usuárias.
Outra dimensão importante da atuação ética é o compromisso com a informação e orientação sobre direitos. A/o profissional deve expor às mulheres os mecanismos legais de proteção, como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), e os serviços disponíveis no território, contribuindo para a reconstrução de seus projetos de vida.
Por fim, a/o assistente social também deve exercer um papel crítico e propositivo, participando da formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao enfrentamento da violência de gênero. Essa dimensão política da profissão reafirma seu compromisso ético com a transformação social e com a construção de uma sociedade livre de opressões e desigualdades.