Neste Dia Internacional da Democracia, o CRESS Entrevista a assistente social e professora Carla Montefusco, que fala sobre o projeto ético-político do Serviço Social, a defesa intransigente dos direitos humanos e a relação entre o processo de formação profissional com a construção de um modelo de sociedade mais justo e democrático.
Carla é doutora em Ciências Sociais, docente do Departamento de Serviço Social da UFRN e desenvolve pesquisas principalmente nas áreas de mídia e linguagem, responsabilidade social empresarial, desenvolvimento sustentável, direitos humanos e segurança pública.
Confira a entrevista na íntegra:
CR: O 15 de setembro foi escolhido para ser o Dia Internacional da Democracia após 128 países aprovarem e assinarem, em 1997, a Declaração Universal da Democracia, incluindo o Brasil. O documento diz que a democracia se funda também no exercício dos direitos humanos. Como você vê essa relação entre a democracia e os direitos humanos na atualidade?
CM: Não há conquista de direitos humanos sem luta nos espaços democráticos. Ao mesmo tempo, espaços democráticos são também resultantes de luta da classe trabalhadora. Vale lembrar que a luta pelos direitos humanos, que precisam ser valorizados e ampliados, é essencial à dignidade humana. No entanto, os direitos conquistados estão circunscritos pelos marcos da sociedade burguesa e suas contradições. Se pensarmos que, desde o fim dos anos de 1990, temos uma Declaração Universal que preconiza a democracia como um ideal universal, é possível identificar que deveríamos ter avançado muito mais nesse sentido. Os marcos documentais e as legislações são importantíssimos, mas é preciso ir além. É preciso ter no horizonte a construção de princípios e valores democráticos que extrapolem os marcos da sociabilidade capitalista. Indubitavelmente, não estamos propondo simplificações analíticas, mas sim uma ampliação do olhar sobre o significado da democracia e dos direitos humanos para além das normativas. O dia 15 de setembro, portanto, não pode ser uma mera lembrança de calendário, mas sim um momento para reforçar o quanto ainda precisamos avançar na construção de sociedades democráticas e respeitando, de forma mais efetiva e contundente, a vida humana em sua diversidade.

CR: O Serviço Social tem princípios éticos e bandeiras de luta que defendem radicalmente a democracia e os direitos humanos. Pensando nisso, de que maneira a profissão tem contribuído, na sua visão, para formar assistentes sociais críticas/os e comprometidas/os com uma outra sociedade e também contribuído para que a população usuária tenha mais dignidade e acesse direitos?
CM: O Projeto Ético-Político do Serviço Social é uma construção coletiva ancorada em princípios democráticos, na defesa intransigente dos direitos humanos e da justiça social. A história de construção desse Projeto de profissão é de luta e é cotidiana. Em cada atendimento, em cada projeto social elaborado, em cada aula ministrada em um curso de Serviço Social, é preciso pensar em ações estratégicas que tenham os valores profissionais como horizonte. Todavia, esse não é um processo fácil, ao contrário, é uma disputa cotidiana. Em cenários de avanço mais intenso da extrema direita, essa disputa é acirrada. Disputa-se espaços de controle social, parcos recursos para execução de uma política pública, fortalecimento de redes de atendimento. Ou seja, nada está garantido e a cada momento é necessário reafirmar os direitos da classe trabalhadora. Nessa direção, os princípios éticos defendidos pelo Serviço Social precisam ser reafirmados e alimentados no desenvolvimento diário das práticas profissionais. Os encontros coletivos e as práticas de educação permanente fortalecem a categoria nesse processo, e o Conjunto CFESS-CRESS tem um papel importantíssimo nesse aspecto. O diálogo e a construção coletiva, que são tão importantes para a nossa categoria profissional, fazem muita diferença para qualificar intervenções e também para alimentar a esperança necessária ao fazer profissional diário. E digo isso porque, como canta Belchior, em “Meu Cordial Brasileiro” (1978),
“Também estou vivo, eu sei
Mas porque posso sangrar
E mesmo vendo que é escuro.
Dizer que o sol vai brilhar”.
CR: Vivemos uma conjuntura política no mundo inteiro que quer retroceder nos direitos humanos e que vai de encontro aos princípios da democracia, com guerras, defesa de regimes ditatoriais, apoio a golpes e também de ascensão do conservadorismo e da extrema-direita. Como fazer o enfrentamento a esta realidade no cotidiano profissional e também na vida social e coletiva?
CM: Em uma realidade complexa e multideterminada, os enfrentamentos precisam considerar essa complexidade e, portanto, devem ocorrer em várias frentes. Um pressuposto importante nesse contexto é o de que a estrutura fundante da nossa sociedade tem a exploração como central. Isso implica dizer que precisamos estar sempre atentas/os aos retrocessos e aos ataques políticos, econômicos e ideológicos que as diversas conjunturas históricas nos impõem. Coletivamente, a organização política permanece essencial, sem ela não há qualquer possibilidade de manutenção e de conquista de direitos humanos. Nesse aspecto, chamo atenção para os trabalhos de base, que avalio, nos últimos tempos, não terem sido priorizados pelos partidos da ala à esquerda no Brasil, favorecendo a difusão do ideário conservador com poucas contraposições importantes. Na particularidade do Serviço Social, como uma profissão inscrita na divisão sociotécnica do trabalho, é fundamental fortalecermos estratégias de luta, de produção de conhecimento e de intervenção profissional que estejam alinhadas ao Projeto-Ético-Político profissional. Como disse anteriormente, a disputa por direitos é constante, embora com nuances particulares em cada contexto sócio-histórico. Exercer tensionamentos em várias frentes é fundamental para contrapor a ascensão da extrema direita.

CR: Como docente, quais os principais desafios e possibilidades que você enxerga para a compreensão, por parte das/os estudantes, de que o projeto ético-político do Serviço Social tem um compromisso, para além da categoria, com as lutas da classe trabalhadora?
CM: Particularizando a análise na universidade pública, da qual sou parte, diria que o primeiro desafio da docência está na lógica operacional. Esse alerta já nos foi feito pela Marilena Chauí no início dos anos 2000, quando sinalizava o papel que a universidade pública tem assumido em tempos de neoliberalismo. A ausência de financiamento para as universidades públicas e o investimento nas universidades privadas como via de acesso da classe trabalhadora ao ensino superior são expressão de processos de mercantilização da educação, e, portanto, de restrição de um direito fundamental. Nesse contexto, pensar a formação profissional crítica e qualificada de assistentes sociais implica em, necessariamente, debater e defender o ensino público, gratuito e de qualidade. Trabalhar nos espaços de formação profissional com direcionamento pelo Projeto Ético-Político da Profissão deve ser um compromisso docente, mas não podemos esquecer que enfrentamos, cotidianamente, desafios semelhantes aos que se colocam no fazer profissional do Serviço Social em seus variados espaços sócio-ocupacionais.
Cada contexto tem particularidades, mas a imposição da lógica mercadológica na gestão das políticas públicas e os cortes de gastos sociais impactam diretamente na forma como exercemos nosso trabalho em todas as esferas de atuação profissional. A universidade é, por excelência, um espaço de disputa de ideias. Assim, para pensar em formação profissional com direcionamento político crítico, é preciso defender, por exemplo, condições de permanência das/os estudantes da universidade, seja na graduação, seja na pós-graduação. Tem origem nos nossos programas de pós-graduação significativa parte da produção do conhecimento da área do Serviço Social. Essa produção qualificada, tenho dito isso recorrentemente em variadas oportunidades, é expressão de resistência na forma de fazer ciência. Desse modo, também expressa compromisso da categoria com a construção de um conhecimento alinhado às demandas e necessidades sociais do público usuário do Serviço Social. Eu diria, então, que nos colocamos diante do desafio de provocar a construção de um conhecimento que vá permitindo a cada discente construir uma capacidade crítico-reflexiva direcionada pelo Projeto Ético-Político do Serviço Social. Mas isso é processual, histórico e exige também enfrentamentos pela defesa de um modelo de universidade democrática e de uma ciência que contribua não somente com o mercado, mas, prioritariamente, com as necessidades mais urgentes da sociedade.